Não é novidade para ninguém que eu considero a proposta de reforma previdenciária(PEC 287/2016) apresentada pelo governo no final de 2016 um enorme retrocesso dos direitos sociais fundamentada em argumentos falaciosos, para dizer o mínimo.
Já tratei deste assunto nos artigos “Reforma da Previdência: explicação descomplicada” e “O rombo da Previdência é uma mentira! O deficit previdenciário não existe”. Porém, neste texto, tratarei do tema sob uma perspectiva diferente: como a reforma previdenciária afeta mais as mulheres do que os homens.
Mas que fique muito claro que a reforma previdenciária é terrível para todos, não somente para as mulheres! Quero apenas enfatizar este aspecto particularmente cruel da reforma, em atenção ao dia internacional da mulher.
1) Requisitos da aposentadoria igualados entre os sexos
Atualmente, dentre os benefícios programáveis, temos basicamente a aposentadoria por tempo de contribuição e a aposentadoria por idade (estou deixando de fora nesta discussão a aposentadoria especial).
Os requisitos mínimos são:
Aposentadoria por tempo de contribuição | ||
Requisito | Homens | Mulheres |
Idade | — | — |
Carência | 180 meses (15 anos) | 180 meses (15 anos) |
TC* | 35 anos | 30 anos |
Aposentadoria por idade | ||
Requisito | Homens | Mulheres |
Idade | 65 | 60 |
Carência | 180 meses (15 anos) | 180 meses (15 anos) |
TC* | — | — |
*TC = tempo de contribuição.
[Obs. 1: para entender melhor, leia o meu artigo O que é carência no Direito Previdenciário? Carência e tempo de contribuição são coisas diferentes, apesar de ser muito fácil confundir.]
Após a reforma, se ela for aprovada como está, teremos apenas um tipo de aposentadoria (que, na minha opinião, mais se assemelha à uma aposentadoria por idade piorada do que à aposentadoria por tempo de contribuição), dessa forma:
Aposentadoria programável após a reforma | ||
Requisito | Homens | Mulheres |
Idade | 65 | 65 |
Carência | ? | ? |
TC* | 25 anos | 25 anos |
[Obs.2: o tempo de contribuição de 49 anos que todos estão comentando afeta o valor do benefício, mas não é um requisito mínimo.]
[Obs. 3: a norma que trata da carência é a lei, e não a constituição. Por isso o ponto de interrogação no item carência].
Ou seja, não irá mais existir a possibilidade de aposentar-se antes da idade mínima estipulada, como é possível hoje com a aposentadoria por tempo de contribuição. Todos, homens e mulheres, deverão atingir, no mínimo, 65 anos para conseguirem aposentar-se.
Quanto ao tempo de contribuição, pode até parecer que a proposta é mais benéfica, pois são apenas 25 anos em comparação aos 35 / 30 anos de antes. No entanto, tenha em mente que, na aposentadoria por tempo de contribuição, cujos requisitos são 35 ou 30 anos, você não precisa ter idade mínima. E, na aposentadoria por idade, na qual você precisa ter idade mínima, a carência são 15 anos.
Destaque-se ainda que, na proposta de reforma, os requisitos estão idênticos para homens e mulheres, o que é um grande retrocesso social (maiores discussões sobre isso no item 3).
2) Pensão por morte
Agora, analisemos as mudanças propostas para a pensão por morte. Lembrando que, desde a medida provisória 664 de 30/12/2014, ela não é mais necessariamente vitalícia (art. 77, § 2º, VI, Lei 8213/91).
2.1) Cumulação de benefícios
Atualmente, é possível que o(a) pensionista cumule pensão por morte com aposentadoria (art. 124 da Lei 8213/91). Ou seja, a pessoa pode aposentar-se pelo INSS e também receber pensão por morte deixada pelo(a) cônjuge ou companheiro(a).
A proposta de reforma previdenciária acaba com esta possibilidade: a pessoa deverá optar entre a pensão por morte ou a aposentadoria.
Isso é um erro e vai contra o princípio da contrapartida, pois ambos os benefícios foram custeados pelo trabalhador: a aposentadoria pelas contribuições previdenciárias da própria pessoa e a pensão, pelas contribuições do(a) cônjuge / companheiro(a).
2.2) Valor
Hoje, o valor da pensão por morte é igual à aposentadoria do falecido ou à aposentadoria por invalidez que ele teria direito se estivesse aposentado por invalidez na data do óbito. Este valor é divido entre os dependentes e, caso um deles deixe de ter direito à pensão (quando completa maioridade, por exemplo), sua cota volta para o “bolo” e é repartida entre os restantes.
Com a proposta, este valor passa a ser de 50% mais 10% para cada dependente, limitado a 100% do valor. Vamos aos exemplos para melhor visualização.
[Obs. 4: se a pensão por morte for calculada com base na aposentadoria por invalidez que o segurado teria direito na data do óbito a situação fica ainda pior, já que este benefício também sofreu drásticas alterações (sobre isso, leia: “Reforma da Previdência: explicação descomplicada”)]
Exemplo 1 – Regras atuais
Segurado que recebe aposentadoria de R$ 1.500,00 falece deixando esposa e um filho. A pensão por morte terá o valor de R$ 1.500,00 e será dividida entre a esposa e o filho. Quando o filho atingir a maioridade previdenciária, a esposa passará a receber R$ 1.500,00 de pensão por morte.
Exemplo 2 – Regras da proposta de reforma previdenciária
Segurado que recebe aposentadoria de R$ 1.500,00 falece deixando esposa e um filho. A pensão por morte terá o valor de 50% + 10% para cada dependente, ou seja 70%.
70% x R$ 1500,00 = R$ 1.050,00
A pensão por morte terá o valor de R$ 1.050,00 e será dividida entre esposa e filho. Quando o filho atingir a maioridade previdenciária, o valor da pensão por morte da esposa passará a ser de 60% do valor da aposentadoria.
60% x R$ 1.500,00 = R$ 900,00.
“Ah, mas este valor é inferior ao salário mínimo, não pode!” Será? Leia o item a seguir…
2.3) Piso constitucional
Atualmente, nenhum benefício previdenciário que o rendimento do trabalho pode ser inferior ao um salário mínimo (art. 201, § 2º da Constituição Federal).
Com a reforma previdenciária, esta regra não se aplicará à pensão por morte, de forma que o(a) pensionista poderá receber valor inferior ao salário mínimo.
Mas veja só que curioso: o valor mínimo da contribuição previdenciária é sempre baseado no salário mínimo.
2.4) Porque isso é mais prejudicial à mulher?
Expliquei tudo isso e, ao que tudo indica, as mudanças na pensão por morte são iguais para homens e mulheres, certo?
Tecnicamente, sim. As regras deste benefício são idênticas para homens e mulheres. No entanto, analisemos o gráfico a seguir, que eu extraí do Anuário Estatístico da Previdência Social de 2015.
Fica claro que os beneficiários de pensão por morte são, em sua grande maioria, mulheres. Por isso, considero que a pensão por morte afetará muito mais as mulheres do que os homens. E você, o que pensa?
3) Privilégio feminino?
Mas por que as mulheres deveriam ter o direito de aposentarem-se antes dos homens? Isso não iria contra o princípio da igualdade? Na verdade, não. O verdadeiro princípio da igualdade (que prefiro chamar de isonomia ) é tratar desigualmente os desiguais para que se igualem.
A razão da garantia da aposentadoria mais precoce para as mulheres é que elas, ainda hoje, realizam dupla jornada (trabalham fora e em casa).
De acordo com o IBGE (fonte), as mulheres gastam 20 horas e 30 minutos nos afazeres domésticos e os homens, 10 horas. É mais que o dobro. Coloque isso na ponta do lápis, multiplicando pelas semanas de um ano e pelos anos de contribuição, e você entenderá o motivo da aparente desigualdade.
Na minha opinião, os requisitos etário e de tempo de contribuição para a aposentadoria só deverão ser igualados quando as pesquisas mostrarem que a diferença de tempo dedicado aos afazeres domésticos é igual entre os sexos.
Ademais, temo que a pensão por morte, do jeito que está na proposta, nos deixará com uma massa de viúvas miseráveis que, se tiverem sorte, dependerão dos filhos para sobreviver com dignidade.
Qual sua opinião sobre este assunto espinhoso? Conte para mim nos comentários. Só peço para que tenhamos uma discussão civilizada.
FONTES:
Lei 8213/91;Constituição Federal;PEC 287/2016;
Anuário Estatístico da Previdência Social 2015;
Nas tarefas de casa, mulheres doam 20 horas do seu tempo e, homens, 10.
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